quinta-feira, 31 de março de 2016

Streaming e a Cobrança de Direitos Autorais em Ambientes Digitais (Estado de Direito, 31/03/2016)

Compartilho o segundo artigo do mês de março publicado em parceria com o Jornal Estado de Direito. Para acessar a publicação original: http://estadodedireito.com.br/streaming-e-cobranca-de-direitos-autorais-em-ambientes-digitais/

Streaming e a Cobrança de Direitos Autorais em Ambientes Digitais

 

Streaming interativo


Chegou ao fim, no último dia 30 de março de 2016, a Consulta Pública disponibilizada pelo Ministério da Cultura, acerca da Instrução Normativa que busca estabelecer previsões específicas para a atividade de cobrança de direitos autorais em ambiente digital. Em que pese a Instrução Normativa em consulta pública trate de questões diversas envolvendo a cobrança de direitos autorais em ambientes digitais, um específico ponto foi o pomo da discórdia: será o streaming interativo – modalidade na qual o usuário pode escolher as obras musicais que deseja executar (playlist), ao contrário do que ocorre com as rádios digitais, inclusive via streaming (simulcasting) – um caso de execução pública musical?

Caso a resposta seja afirmativa, como defendem os músicos, em geral, e o próprio Ministério da Cultura, os players de streaming – como o Spotify e o Deezer, e.g. -, que surgem como novos e influentes atores deste multimilionário mercado, estarão obrigados a pagar ao ECAD o licenciamento pela execução pública das obras musicais executadas em suas plataformas.

A questão, entretanto, vai além. Conforme é cediço, para ter acesso às obras musicais, e poder disponibilizá-las em seus websites, os serviços de streaming interativos já fecham contratos específicos de licenciamento com as gravadoras e editoras musicais, normalmente com sede no exterior, que, por sua vez, repassam parcela destes valores aos compositores e intérpretes, conforme contratos particulares com os próprios artistas. Neste sentido, a regulamentação proposta pelo Ministério da Cultura também surge com vistas a apaziguar os anseios da classe artística, que vem reclamando falta de critérios específicos e transparentes na negociação e distribuição destes valores.

Antes de avançar, contudo, no epicentro desta nebulosa questão, importante contextualizar o debate, e da própria origem da relação entre os diversos atores da indústria da música.

O Streaming e a Revolução na Indústria da Música

Há quem diga que a indústria da música não está em busca de salvação. Entretanto, é fato incontroverso que nos anos que seguiram a década de 90’, a indústria da música viu crescer, consideravelmente, a sombra da pirataria de obras musicais, que com a propulsão dos meios de comunicação em massa e o advento da internet, encontrou meios facilitados de se propagar na rede mundial de computadores. As razões para o crescimento das cópias de obras musicais ilícitas são as mais variadas, conquanto, podemos afirmar, com certa segurança, que uma das principais causas foi a própria omissão da indústria da música, que demorou cerca de uma década para perceber que os hábitos dos seus consumidores haviam mudado.

A primeira loja virtual de música digital, o iTunes, da Apple, seria inaugurada, apenas, no distante ano de 2001. Com o advento do iTunes, pela primeira vez na história as pessoas poderiam adquirir de forma lícita suas músicas favoritas, com a mesma liberdade de quem acessaria quaisquer das ferramentas de downloads ilegais.

Ao que tudo indica, conquanto, a indústria da música, ainda, não havia atingido a real necessidade de seus clientes, eis que na década que seguiu a 2001, a indústria da música não teria auferido um ano sequer de crescimento de vendas digitais, se comparado com o final dos anos 90, segundo informações publicadas no website da Federação Internacional da Indústria Fonográfica (IFPI), em fevereiro de 2013. De acordo com essa mesma pesquisa, apenas em 2012 a indústria mundial fonográfica teria obtido o primeiro ano de crescimento em vendas digitais, desde 1999; um singelo aumento de 0,2% em suas vendas.

Neste sentido, a tecnologia streaming nasce como opção para a indústria da música sanar o antigo problema da pirataria de obras musicais – reprodução não autorizada (cópia) -, e reaver seu espaço no mercado da música.

Em parceria com os players de streaming, que vieram a se consolidar no mercado, facilitou-se o acesso às obras musicais, sem a necessidade do download das mesmas, logrando-se êxito em garantir a segurança das obras musicais contra a pirataria, ao mesmo tempo em que desenvolveu inovador modelo de negócio, transformando a música de um produto – passível de cópia – em um serviço – acessível, monetariamente, que não ocupa espaço em disco e pode ser cancelado a qualquer momento.

Streaming e a Alforria dos Músicos Independentes

A parceria das gravadoras e editoras musicais com os players de streaming consolidou-se em um novo mercado para a música, além de representar uma revolução econômica e social, seja na relação dos usuários com a música, ou na própria forma de trabalho e remuneração da classe artística vinculada aos grandes selos da indústria da música. Todavia, as marcas de transformação não são aparentes, apenas, para os grandes players que dominam o show business. Também os músicos locais e independentes foram severamente impactados pela possibilidade de divulgação de suas obras nos ambientes digitais, principalmente, através de streaming, em suas mais diversas formas.

Se antes o músico para obter sucesso era obrigado, necessariamente, a se vincular a uma grande gravadora ou editora musical, com o advento das novas tecnologias, inclusive o streaming, surgiu uma nova opção para músicos locais e independentes divulgarem suas obras em proporções globais. Desde que a composição musical já tenha se tornado um fonograma, os músicos podem optar por, seguramente, disponibilizá-la em qualquer player de streaming ou loja virtual, sem a antiga necessidade de estar representado por uma gravadora.

Isso permite que, de forma autônoma e sem intermediários, os músicos mantenham a titularidade sobre os direitos autorais de suas obras, além de gozarem de uma plataforma de divulgação que permite que a obra seja utilizada em qualquer lugar dos quatro cantos do planeta. Atualmente, diversas bandas têm se empenhado a, de forma independente, produzir conteúdo e disponibilizá-lo na internet, às vezes de forma gratuita, como forma de encantar e manter a fidelidade de seus fãs, apostando nas apresentações ao vivo como forma de receita.

A Cobrança de Direitos Autorais em Ambientes Digitais

É perceptível, destarte, que a tecnologia streaming traz enormes transformações para o mercado da música, seja em nível “show business” ou “músico independente”. Os próprios números divulgados pela Federação Internacional da Indústria Fonográfica (IFPI), atinentes ao ano de 2014, demonstram o cenário de transformação. Conforme o Digital Music Report 2014, divulgado no website da IFPI, em 2014 o mercado mundial de músicas digitais cresceu 6,9%, o que representa US$6.85 bilhões de dólares, e, pela primeira vez na história, as vendas de musicais digitais foram equivalentes às vendas em formato físico.

Como é natural, toda grande revolução traz consigo, também, dúvidas e controvérsias. A própria Lei de Direitos Autorais pátria (Lei nº 9.610/98), é absolutamente omissa em tutelar o uso de obras musicais em ambientes digitais. Neste sentido, é muito bem vinda a Instrução Normativa proposta pelo Ministério da Cultura, que busca estabelecer previsões específicas para a atividade de cobrança de direitos autorais em ambiente digital, principalmente se considerarmos a forma transparente e democrática com que o assunto vem sendo tratado.

Entretanto, é igualmente perceptível que o impasse erigido entre músicos, gravadoras e players de streaming, acerca da configuração, ou não, do streaming interativo como hipótese de execução pública passível de cobrança pelo ECAD, conforme inserto nos §§1º e 2º do artigo 6º da Instrução Normativa em Consulta Pública, dialoga, diretamente, com a própria definição de valores e de postura da legislação brasileira quanto ao grau de proteção e/ou incentivo que está disposto a conceder aos atores centrais da indústria da música.

Neste impasse, pode-se considerar, e.g., que os players de streaming já efetuam o licenciamento das obras disponibilizadas em suas plataformas junto às gravadoras e editoras musicais, e que uma nova cobrança por licenciamentos de execução pública iria ser um bis in idem, além de onerar em demasia este setor, freando a expansão e criação de novas empresas produtivas no país.

Todavia, este entendimento, certamente, não viria ao melhor interesse dos músicos, que perceberiam crescer sua dependência econômica e comercial junto aos grandes selos do show business, além da manutenção das mesmas irresignações quanto à transparência na execução dos contratos com estas empresas.

Por outro lado, o entendimento de que o streaming interativo representa caso de execução pública, passível de cobrança pelo ECAD, poderia proporcionar uma nova fonte de receita a músicos independentes, e um incentivo à alforria da criação junto a intermediários, fomentando-se, via de consequência, a própria expansão da cultura livre com a inserção de novos partícipes em potencial na indústria da música.

S.m.j., a Lei nº 9.610/98 abarca qualquer das interpretações. Todavia, o posicionamento que transparece mais lúcido, em nosso sentir, é no sentido de que, efetivamente, o streaming interativo se trata de hipótese de execução pública musical, seja em razão do rol extensivo de direitos dos artigos 29 e 68, §§2º e 3º, da Lei Autoral, ou pelo próprio ânimo que se encontra no epicentro do próprio sentido da proteção por Direito Autoral, de que o Autor seja remunerado, de forma justa, pelos mais diversos usos de sua obra (Art. 31, Lei 9.610/98).

A controvérsia imposta, conquanto, não poderá, e não deverá, ser resolvida com base em singelas interpretações jurídicas de textos legais, sob pena de uma suposta neutralidade da lei e de seus intérpretes não atingirem o epicentro da problemática em questão. O que se espera, com o término da Consulta Pública, é que o Ministério da Cultura consiga extrair os verdadeiros anseios políticos e econômicos da nação, traduzindo-os na novel Instrução Normativa, de forma a trazer segurança jurídica e transparência à relação que unem músicos, gravadoras e players de streaming.

*Artigo publicado em 31/03/2016, no Jornal Estado de Direito: http://estadodedireito.com.br/streaming-e-cobranca-de-direitos-autorais-em-ambientes-digitais/

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