Compartilho o segundo artigo do mês de março publicado em parceria com o Jornal Estado de Direito. Para acessar a publicação original: http://estadodedireito.com.br/streaming-e-cobranca-de-direitos-autorais-em-ambientes-digitais/
Streaming e a Cobrança de Direitos Autorais em Ambientes Digitais
Streaming interativo
Chegou ao fim, no último dia 30 de março de 2016, a Consulta Pública disponibilizada pelo Ministério da Cultura, acerca da Instrução Normativa
que busca estabelecer previsões específicas para a atividade de
cobrança de direitos autorais em ambiente digital. Em que pese a
Instrução Normativa em consulta pública trate de questões diversas
envolvendo a cobrança de direitos autorais em ambientes digitais, um
específico ponto foi o pomo da discórdia: será o streaming interativo –
modalidade na qual o usuário pode escolher as obras musicais que deseja
executar (playlist), ao contrário do que ocorre com as rádios digitais, inclusive via streaming (simulcasting) – um caso de execução pública musical?
Caso a resposta seja afirmativa, como defendem os músicos, em geral, e
o próprio Ministério da Cultura, os players de streaming – como o Spotify e o Deezer, e.g. -, que surgem como novos e influentes atores deste multimilionário mercado, estarão obrigados a pagar ao ECAD o licenciamento pela execução pública das obras musicais executadas em suas plataformas.
A
questão, entretanto, vai além. Conforme é cediço, para ter acesso às
obras musicais, e poder disponibilizá-las em seus websites, os serviços
de streaming interativos já fecham contratos específicos de
licenciamento com as gravadoras e editoras musicais, normalmente com
sede no exterior, que, por sua vez, repassam parcela destes valores aos
compositores e intérpretes, conforme contratos particulares com os
próprios artistas. Neste sentido, a regulamentação proposta pelo
Ministério da Cultura também surge com vistas a apaziguar os anseios da
classe artística, que vem reclamando falta de critérios específicos e
transparentes na negociação e distribuição destes valores.
Antes de avançar, contudo, no epicentro desta nebulosa questão,
importante contextualizar o debate, e da própria origem da relação entre
os diversos atores da indústria da música.
O Streaming e a Revolução na Indústria da Música
Há quem diga que a indústria da música não está em busca de salvação.
Entretanto, é fato incontroverso que nos anos que seguiram a década de
90’, a indústria da música viu crescer, consideravelmente, a sombra da
pirataria de obras musicais, que com a propulsão dos meios de
comunicação em massa e o advento da internet, encontrou meios
facilitados de se propagar na rede mundial de computadores. As razões
para o crescimento das cópias de obras musicais ilícitas são as mais
variadas, conquanto, podemos afirmar, com certa segurança, que uma das
principais causas foi a própria omissão da indústria da música, que
demorou cerca de uma década para perceber que os hábitos dos seus
consumidores haviam mudado.
A primeira loja virtual de música digital, o iTunes, da Apple, seria inaugurada, apenas, no distante ano de 2001.
Com o advento do iTunes, pela primeira vez na história as pessoas
poderiam adquirir de forma lícita suas músicas favoritas, com a mesma
liberdade de quem acessaria quaisquer das ferramentas de downloads
ilegais.
Ao que tudo indica, conquanto, a indústria da música, ainda, não
havia atingido a real necessidade de seus clientes, eis que na década
que seguiu a 2001, a indústria da música não teria auferido um ano
sequer de crescimento de vendas digitais, se comparado com o final dos
anos 90, segundo informações publicadas no website da Federação Internacional da Indústria Fonográfica (IFPI),
em fevereiro de 2013. De acordo com essa mesma pesquisa, apenas em 2012
a indústria mundial fonográfica teria obtido o primeiro ano de
crescimento em vendas digitais, desde 1999; um singelo aumento de 0,2%
em suas vendas.
Neste sentido, a tecnologia streaming nasce como opção para a indústria da música sanar o antigo problema da pirataria de obras musicais – reprodução não autorizada (cópia) -, e reaver seu espaço no mercado da música.
Em parceria com os players de streaming, que vieram a se consolidar
no mercado, facilitou-se o acesso às obras musicais, sem a necessidade
do download das mesmas, logrando-se êxito em garantir a segurança das
obras musicais contra a pirataria, ao mesmo tempo em que desenvolveu
inovador modelo de negócio, transformando a música de um produto –
passível de cópia – em um serviço – acessível, monetariamente, que não
ocupa espaço em disco e pode ser cancelado a qualquer momento.
Streaming e a Alforria dos Músicos Independentes
A parceria das gravadoras e editoras musicais com os players de
streaming consolidou-se em um novo mercado para a música, além de
representar uma revolução econômica e social, seja na relação dos
usuários com a música, ou na própria forma de trabalho e remuneração da
classe artística vinculada aos grandes selos da indústria da música.
Todavia, as marcas de transformação não são aparentes, apenas, para os
grandes players que dominam o show business. Também os músicos locais e
independentes foram severamente impactados pela possibilidade de
divulgação de suas obras nos ambientes digitais, principalmente, através
de streaming, em suas mais diversas formas.
Se antes o músico para obter sucesso era obrigado, necessariamente, a
se vincular a uma grande gravadora ou editora musical, com o advento
das novas tecnologias, inclusive o streaming, surgiu uma nova opção para
músicos locais e independentes divulgarem suas obras em proporções
globais. Desde que a composição musical já tenha se tornado um
fonograma, os músicos podem optar por, seguramente, disponibilizá-la em
qualquer player de streaming ou loja virtual, sem a antiga necessidade
de estar representado por uma gravadora.
Isso permite que, de forma autônoma e sem intermediários, os músicos
mantenham a titularidade sobre os direitos autorais de suas obras, além
de gozarem de uma plataforma de divulgação que permite que a obra seja
utilizada em qualquer lugar dos quatro cantos do planeta. Atualmente,
diversas bandas têm se empenhado a, de forma independente, produzir
conteúdo e disponibilizá-lo na internet, às vezes de forma gratuita,
como forma de encantar e manter a fidelidade de seus fãs, apostando nas
apresentações ao vivo como forma de receita.
A Cobrança de Direitos Autorais em Ambientes Digitais
É perceptível, destarte, que a tecnologia streaming traz enormes
transformações para o mercado da música, seja em nível “show business”
ou “músico independente”. Os próprios números divulgados pela Federação
Internacional da Indústria Fonográfica (IFPI), atinentes ao ano de 2014,
demonstram o cenário de transformação. Conforme o Digital Music Report 2014,
divulgado no website da IFPI, em 2014 o mercado mundial de músicas
digitais cresceu 6,9%, o que representa US$6.85 bilhões de dólares, e,
pela primeira vez na história, as vendas de musicais digitais foram
equivalentes às vendas em formato físico.
Como é natural, toda grande revolução traz consigo, também, dúvidas e controvérsias. A própria Lei de Direitos Autorais pátria (Lei nº 9.610/98),
é absolutamente omissa em tutelar o uso de obras musicais em ambientes
digitais. Neste sentido, é muito bem vinda a Instrução Normativa
proposta pelo Ministério da Cultura, que busca estabelecer previsões
específicas para a atividade de cobrança de direitos autorais em
ambiente digital, principalmente se considerarmos a forma transparente e
democrática com que o assunto vem sendo tratado.
Entretanto, é igualmente perceptível que o impasse erigido entre
músicos, gravadoras e players de streaming, acerca da configuração, ou
não, do streaming interativo como hipótese de execução pública passível
de cobrança pelo ECAD, conforme inserto nos §§1º e 2º do artigo 6º da
Instrução Normativa em Consulta Pública, dialoga, diretamente, com a
própria definição de valores e de postura da legislação brasileira
quanto ao grau de proteção e/ou incentivo que está disposto a conceder
aos atores centrais da indústria da música.
Neste impasse, pode-se considerar, e.g., que os players de
streaming já efetuam o licenciamento das obras disponibilizadas em suas
plataformas junto às gravadoras e editoras musicais, e que uma nova
cobrança por licenciamentos de execução pública iria ser um bis in idem, além de onerar em demasia este setor, freando a expansão e criação de novas empresas produtivas no país.
Todavia, este entendimento, certamente, não viria ao melhor interesse
dos músicos, que perceberiam crescer sua dependência econômica e
comercial junto aos grandes selos do show business, além da manutenção
das mesmas irresignações quanto à transparência na execução dos
contratos com estas empresas.
Por outro lado, o entendimento de que o streaming interativo representa caso de execução pública, passível de cobrança pelo ECAD, poderia proporcionar uma nova fonte de receita a músicos independentes, e um incentivo à alforria da criação junto a intermediários, fomentando-se, via de consequência, a própria expansão da cultura livre com a inserção de novos partícipes em potencial na indústria da música.
S.m.j., a Lei nº 9.610/98
abarca qualquer das interpretações. Todavia, o posicionamento que
transparece mais lúcido, em nosso sentir, é no sentido de que,
efetivamente, o streaming interativo se trata de hipótese de execução
pública musical, seja em razão do rol extensivo de direitos dos artigos
29 e 68, §§2º e 3º, da Lei Autoral, ou pelo próprio ânimo que se
encontra no epicentro do próprio sentido da proteção por Direito
Autoral, de que o Autor seja remunerado, de forma justa, pelos mais
diversos usos de sua obra (Art. 31, Lei 9.610/98).
A controvérsia imposta, conquanto, não poderá, e não deverá, ser
resolvida com base em singelas interpretações jurídicas de textos
legais, sob pena de uma suposta neutralidade da lei e de seus
intérpretes não atingirem o epicentro da problemática em questão. O que
se espera, com o término da Consulta Pública, é que o Ministério da
Cultura consiga extrair os verdadeiros anseios políticos e econômicos da
nação, traduzindo-os na novel Instrução Normativa, de forma a trazer
segurança jurídica e transparência à relação que unem músicos,
gravadoras e players de streaming.
*Artigo publicado em 31/03/2016, no Jornal Estado de Direito: http://estadodedireito.com.br/streaming-e-cobranca-de-direitos-autorais-em-ambientes-digitais/
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