Este último artigo é fruto de um diálogo incrível com a (minha :P) Designer de Produto, Daniella Ferst,
que trouxe sua qualificadíssima experiência com a shareconomy e a
inovação social para dentro da Propriedade Intelectual. Um texto
construído com muito afeto e diálogo. De certa forma, dois valores que a
Propriedade Intelectual tem demonstrado carecer. Espero que gostem!
*Publicado em 18/04/2016, no Jornal Estado de Direito online.
A (R)Evolução da Shareconomy: Impressoras 3D e Inovação Social
| Maurício Brum Esteves e Daniella Calvano Ferst |Estado de Direito
Propriedade Intelectual e Impressoras 3D
Quando Chuck Hull mostrou ao mundo, em meados dos anos 80, a primeira
impressora 3D, criando a possibilidade de imprimir objetos em três
dimensões, operou-se um verdadeiro alvoroço na indústria tradicional,
ante a mera perspectiva de aumento da pirataria de produtos protegidos
pela Propriedade Intelectual.
Através de um processo de fabricação relativamente simples, no qual
um objeto tridimensional sólido de praticamente qualquer formato e
tamanho pode ser reproduzido a partir de um modelo digital –
frequentemente disponível de forma gratuita na web -,
utilizando-se dos mais variados aditivos e materiais, as impressoras 3D
passaram a permitir, dentre outros, a impressão de brinquedos,
utensílios de cozinha, peças decorativas, móveis, bijuterias, próteses
ortopédicas, entre inúmeras outras utilidades, por preços muito mais
vantajosos do que os vendidos no varejo.
Atualmente, as possibilidades de criação com as impressoras 3D são
quase infinitas, e vêm promovendo a expansão de uma inovação de cunho
social, antes negligenciada pela Propriedade Intelectual. Cumpre lembrar
que em sua concepção original, a Propriedade Intelectual cria uma escassez artificial e uma rivalidade de consumo para os bens imateriais – que são “bens livres”,
em seu estado natural -, justamente para permitir sua apropriação, como
se estivessem sujeitos à lei da escassez, e, desta forma, servir de
incentivo à inovação [1].
Ao que tudo indica, conquanto, a “promessa” da Propriedade
Intelectual de que o método de “apropriação” serviria como ferramenta de
fomento à inovação, tem sido amplamente questionada [2]. Além disso,
tem-se verificado que as melhores e mais eficazes ações para fomento da
inovação, inclusive aquela de cunho social, têm passado ao largo da
ideologia de “apropriação” instaurada pela Propriedade Intelectual.
Assim, por exemplo, para muito além do ideário protetivo da
Propriedade Intelectual, tem sido a partir de modelos colaborativos, e
frequentemente gratuitos e livres para uso, que diversas pessoas e
empresas – como a Associação Garagem Fab Lab, em São Paulo, e.g.
[3] – têm se empenhado em criar os ambientes de fabricação
colaborativos adequados, bem como os modelos digitais de objetos que
possam facilitar a vida daquelas pessoas que as necessitam, mas que não
conseguem ter acesso a estes bens, por razões econômicas e sociais.
Por outro lado, entretanto, ofuscada pelas promessas da Propriedade
Intelectual, a indústria tradicional ainda enxerga as impressoras 3D,
exclusivamente como uma ameaça a seus Direitos, e, paradoxalmente, vêm
lançando mão da mesma Propriedade Intelectual – que deveria ser o
genuíno elemento de fomento à inventividade criativa – para frear a
expansão das impressoras 3D, que, como visto, vem tendo fulcral
importância, justamente, no fomento à inovação. Um das mais curiosas
tentativas, neste sentido, é o caso da patente nº 8286236, requerida nos
Estados Unidos da América, pela empresa Intellectual Ventures of Bellevue.
Com esta tecnologia, a empresa pretende bloquear impressoras 3D de
reproduzir arquivos protegidos por Direitos Autorais, utilizando de um
mecanismo que se assemelha ao sistema DRM (digital rights management), largamente utilizado em CDs, DVDs, E-Books, etc., para impedir a cópia de arquivos digitais [4].
Inovação Social e a (R)Evolução das Impressoras 3D
A tensão acima, nos demonstra que repensar é preciso. Talvez,
tenhamos chegado a um momento em que tanto pessoas como empresas
precisarão rever seu modelo de negócio e sua forma de adquirir e de
consumir produtos. E tão logo, que a própria Propriedade Intelectual se
adapte a estas novas e iminentes formas de inovar, e se coloque como um
meio de promover esse crescente influxo de movimentos colaborativos que,
ao fim e ao cabo, buscam questionar a tradicional tutela de
“apropriação”, em prol de uma maior liberdade para a criatividade.
Expandindo-se em diversas frentes, a shareconomy ou economia
compartilhada, e junto a ela a colaborativa, estão sendo um meio de
disseminação das tecnologias como as impressoras 3D. Uma tecnologia que
agrega a função social às necessidades da sociedade – que o grande
mercado não vê -, além de aquecer um mercado de produtos seriados, porém
com produção por demanda, e tendo a possibilidade de desenvolver
produtos únicos.
A shareconomy também surge, com força, para o consumidor
final, como incentivo para a produção de seus próprios produtos. Este
movimento específico da cultura do compartilhamento vem sendo chamado de
Movimento Maker. Essa ideia de produção “em casa” já existia,
de forma mais artesanal, em nossos avós e pais, e suas garagens cheias
de ferramentas. A inovação, todavia, está alterando o nível de
profissionalismo e diversidade de produtos que se pode criar em casa
utilizando estas impressoras 3D.
Além de imitir o consumidor no poder para produzir seu próprio produto, cria-se a oportunidade de produção de tecnologias únicas e exclusivas, ou até mesmo inovando sobre uma necessidade que ninguém antes havia percebido.
Entre grandes empresas, que já possuem em mãos tecnologias mais
avançadas neste processo, existe a busca pela inovação e descoberta de
novos usos para a produção em 3D, em expertises diferenciadas. Neste
sentido, podemos citar o exemplo da empresa francesa L’Oreal, que
querendo eliminar os testes em animais, desenvolveu uma pele humana
impressa em 3D. Neste mesmo influxo, a NASA financiou o desenvolvimento
de uma impressora de alimentos para amenizar a fome ao redor do mundo,
criando, consequentemente, uma nova alternativa para as viagens ao
espaço.
No video Brasil Makers, retrato de uma nova geração de inovadores
[5],podemos ver o quanto a cultura empreendedora dos jovens atualmente
também está mudando a forma de fazer negócios, valendo-se destas novas
tecnologias disponíveis para produção de produtos. Este movimento, que
se tem chamado de Terceira Revolução Industrial, traz consigo uma
característica que advém do primeiro sistema produtivo que existiu,
antes mesmo do inicio da Primeira Revolução Industrial – que teve inicio
no final do século XVIII [6], o artesanal.
Hoje, porém, com a utilização destas novas tecnologias, o fluxo de
produção está sendo guiado pela demanda existente do consumidor, que tem
a possibilidade de produzir o que precisa, ao contrário do sistema que
nos vinha “empurrando”, desde o ápice da Revolução Industrial, no século
XIX, produtos desenvolvidos com o único intuito de nos criar demandas,
que não necessariamente são reais, além de uma produção/consumo
excessiva e desordenada, comandada por grandes empresas detentoras de
tecnologias produtivas.
Todos têm capacidade para a criatividade e inovação, se influenciados
a tanto. Quem sabe a inovação irá surgir da mão de cidadãos comuns, que
em suas casas entendem melhor suas necessidades, do que o mercado, em
si, que muitas vezes nos cria necessidades que nunca tivemos.
A grande questão que se sobressai, neste cenário, é: será que ainda precisaremos de leis para gerir a propriedade de produtos criados em casa, para uso comum ou para uso coletivo? Ou, melhor, tem a Propriedade Intelectual condições de fomentar o avanço da inovação social?
Propriedade Intelectual no divã: repensar é preciso…
A pretensão deste artigo não é o de condenar a Propriedade
Intelectual, mas, exclusivamente, fomentar a reflexão e a discussão
acerca das reais condições que a Propriedade Intelectual (e seu ideário
oitocentista) dispõe para cumprir com o compromisso de fomento à
inovação assumido. Principalmente se considerarmos as gritantes
desigualdades sociais que assolam o Brasil, é urgente e necessário que a
Propriedade Intelectual não se reduza à simplicista posição de trazer
um abstrato progresso econômico e social, justa e paradoxalmente,
impedindo que o conhecimento e a tecnologia atinjam todas as camadas da
população.
Com efeito, a Propriedade Intelectual precisa se reinventar, em sua
mais profunda carga axiológica, em busca de uma inovação livre e
colaborativa, além da necessária (re)democratização do acesso ao
conhecimento e às novas tecnologias. A inovação, para além de sua função
abstrata, deve servir de guia para o desenvolvimento de soluções novas e
criativas que consigam promover a satisfação de necessidades humanas
não satisfeitas e a promoção da inclusão social, além da capacitação de
atores sociais que cumpram, efetivamente, com a sua condição de cidadão
[7].
Se a Propriedade Intelectual não se reformular, em sua mais profunda
raiz, para poder cumprir com as suas obrigações sociais inerentes, o
almejado desenvolvimento econômico não passará de uma utopia.
NOTAS E BIBLIOGRAFIA:
[1] Conforme adverte Eduardo Loureiro, a “propriedade, sob a
ótica econômica, é uma resposta à escassez. Quando são muitos os
recursos, não há necessidade de se apropriar deles, que estão
disponíveis em comum e para todos, gratuitamente. Quando se tornam
escassos, nascem os conflitos e a necessidade de apropriação individual,
para garantia da subsistência própria e para evitar o aniquilamento dos
recursos”. (LOUREIRO, Francisco Eduardo. A Propriedade como Relação Jurídica Complexa. Ed. Renovar, Rio de Janeiro, 2003, P. 10). Por esta razão é que “os
bens intelectuais só se tornam apropriáveis através de uma criação
legal, i.e., de uma intervenção do Estado. É o Estado, através da Lei,
quem transforma o bem intelectual em bem apropriável” (GRAU-KUNTZ, Karin. Jusnaturalismo e Propriedade Intelectual. Revista da ABPI – nº100 – Mai/Jun 2009. p. 09). Por esta razão, é que a intervenção estatal só se justifica, s.m.j., na promessa de a Propriedade Intelectual possa servir de ferramenta de fomento à inovação, originalidade, inventividade, etc.
[2] Neste sentido, conforme salienta Denis Barbosa, “cerca de 95% das patentes concedidas a estrangeiros em países em desenvolvimento não eram usadas para a produção local” (BARBOSA, Denis. Tratado da Propriedade Intelectual. Tomo II – Patentes. Editora Lumen Juris. Rio de Janeiro 2010. P; 1766). No mesmo contexto, Carol Proner afirma que “Dados
da UNCTAD dos últimos 70 anos indicam que países periféricos, por
intermédio de suas pessoas físicas ou jurídicas, seriam detentoras de
apenas 16% das patentes concedidas internamente, enquanto 84%
pertenceriam a cidadãos ou entidades de países centrais. Estudos apontam
que, desse total 84%, apenas 5% dessas patentes passam a ser
efetivamente exploradas, atuando, então, como um importante instrumento
de bloqueio de mercado à livre entrada de novos concorrentes” (PRONER, Carol. Propriedade Intelectual: para outra ordem jurídica possível. – São Paulo: Cortez, 2007. P. 60).
[3] Associação Garagem Fab Lab é um laboratório de fabricação digital. Informações completas podem ser encontradas no website: http://garagemfablab.com.br/
[5] Vide YouTube: Brasil Makers, retrato de uma nova geração de inovadores – https://www.youtube.com/watch?v=_TyyNaHM2DY
[6] Nesse sentido: “O artesanato, primeira forma de produção
industrial, surgiu em fins da Idade Média com o renascimento comercial e
urbano e definia-se pela produção independente; o produtor possuía os
meios de produção: instalações, ferramentas e matéria-prima. Em casa,
sozinho ou com a família, o artesão realizava todas as etapas da
produção. A manufatura resultou da ampliação do consumo, que levou o
artesão a aumentar a produção e o comerciante a dedicar-se à produção
industrial.” – http://www.culturabrasil.pro.br/revolucaoindustrial.htm
[7] Neste sentido: “Assim, entendemos a inovação social como uma
resposta nova e socialmente reconhecida que visa e gerar mudança social,
ligando simultaneamente três atributos: (i) satisfação de necessidades
humanas não satisfeitas por via do mercado; (ii) promoção da inclusão
social; e (iii) capacitação de agentes ou actores sujeitos, potencial ou
efectivamente, a processos de exclusão/marginalização social,
desencadeando, por essa via, uma mudança, mais ou menos intensa, das
relações de poder.” (ANDRÉ, Isabel; ABREU, Alexandre. Dimensões e Espaços da Inovação Social. Revista Finisterra. v. 41, n. 81 (2006)).
Maurício Brum Esteves é Articulista do Estado de Direito
-Advogado. Mestrando em Direito na UNISINOS. Especialista em Direito da
Propriedade Intelectual pela FADERGS. Membro da Comissão de Propriedade
Intelectual da OAB/RS. CV Lattes: http://lattes.cnpq.br/9536373205346420. E-mail: mauricio.esteves@silveiro.com.br
Daniella Ferst é Articulista do Estado de Direito graduada
em Design de Produto, pela Uniritter, e proprietária do estúdio Polpa
Curadoria, especializado na gestão de projetos de produtos com foco
social e ambiental. Diretora de Projetos na ONG Net Impact POA. E-mail: polpacuradoria@gmail.com
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