sábado, 27 de abril de 2013

Cobrança descentralizada de direito autoral gera caos


Por Maurício Brum Esteves
Artigo publicado em Revista Consultor Jurídico, 24 de abril de 2013

Na última quinta-feira, 18 de abril de 2013, o sítio eletrônico do Consultor Jurídico publicou um artigo, de autoria de Pedro Szajnferber de Franco Carneiro e Thomas George Macrander, denominado Associações podem processar Ecad por perdas e danos.
Com suporte em um título que, por si só, nos causa estranheza, em razão da nítida incitação ao ajuizamento de ações judiciais, os autores do texto ao abordarem a recente decisão do Cade, que condenou o Ecad e Associações filiadas por práticas anticoncorrenciais — PA 08012.003745/2010-83 —, propõem que “empresas e associações que foram afetadas por tais práticas nos últimos anos, pagando um sobrepreço em relação ao que lhes deveria ser cobrado se vigorasse um ambiente de livre concorrência, poderão ingressar em juízo com ações individuais ou coletivas para reclamar do Ecad e suas associações tal diferença”.
Frise-se que a mencionada estranheza não se dá, apenas, pela desnecessária incitação pública ao ajuizamento de ações judiciais, mas, principalmente, pelo fato de tal pretensão afrontar (I) a previsão constitucional inserta no artigo 5º, XVIII, da CF/88, que confere aos autores o direito de estabelecer o valor a ser atribuído às suas criações musicais; bem como de encontro (II) à decisão judicial, proferida pelo Supremo Tribunal Federal, em sede do julgamento da ADI 2.054-DF, que, ao declarar a constitucionalidade do artigo 99 e parágrafo 1º, da Lei 9.610/1998, reconheceu a plena legitimidade do Ecad em arrecadar e distribuir, de forma unificada, os direitos autorais no Brasil.
Imperioso destacar, por oportuno, que a recente decisão do Cade vai de encontro, inclusive, a entendimento pretérito deste mesmo órgão, proferidas, respectivamente, nos anos de 1995 (PA 08000.11187/95-15) e 1997 (PA 08000.002511/97-19).
Conforme restou estabelecido no processo administrativo referente ao ano de 1995: “Embora a atividade de arrecadação e distribuição de direitos envolva elementos econômicos, até porque, em última análise, estão envolvidos valores monetários e custos de administração e organizacional, não é uma atividade empresarial (…). O CADE apenas pode se manifestar em casos em que a atividade empresarial é reconhecida (…)”. (PA 08000.11187/95-15).
Dois anos mais tarde, em 1997, a incompetência do Cade para fiscalizar as atividades do Ecad seria ratificada, sob o mesmo argumento de que arrecadar e distribuir direitos autorais não é atividade de natureza econômica, já que a música não pode ser caracterizada como um bem de consumo a ser ditado pelas regras de concorrência.
Destarte, cediço de que o Cade apenas pode se manifestar em casos em que a atividade empresarial é reconhecida, restou definitivamente decidido, no ano de 1997, que a “matéria é estranha ao direito concorrencial, não havendo mercado relevante, pois direitos autorais não se tratam de mercadorias”. (PA 08000.002511/97-19)
Vê-se, portanto, conforme restou amplamente sedimentado nos anos 90, que o Ecad não exerce atividade econômica, uma vez que sequer possui finalidade lucrativa, atuando apenas como mandatário dos autores de músicas, inexistindo, por via de conseqüência, qualquer atividade empresarial, muito menos de caráter anticoncorrencial.
Portanto, nos causa espécie o fato de que os autores, amparados em uma decisão atípica do Cade, que, aliás, não possui qualquer força jurisdicional para regular o Direito pátrio, vir à tona incitar o ajuizamento de ações judiciais, ressuscitando uma temática que, nos anos 90, restou absolutamente sedimentada no ordenamento jurídico brasileiro, amparada, inclusive, pelo Supremo Tribunal Federal.
Demais a mais, importante lembrar que o sistema de arrecadação e distribuição de direitos autorais, através de um órgão centralizado, foi um imperativo criado, justamente, para dirimir o caos em que se encontrava a situação na década de 60, com mais de 10 (dez) associações arrecadando e recolhendo direitos autorais, de forma confusa e desconexa. (STF ADI 2.054 apud Nehemias Gueiros Jr., in Direito Autoral no Show Business, Ed. Gryphus. Volume I – A música, 1999, pág. 437/438).
Neste norte, fica evidente, conforme a experiência brasileira nos indica, que em se tratando de direitos autorais, a convivência pulverizada de associações, paralelamente arrecadando e cobrando dos usuários de música não pode ser entendido como um mercado competitivo. Muito pelo contrário, a diversidade de entidades na arrecadação é que criaria o desmantelamento do sistema de arrecadação de direitos autorais, podendo causar, entre outros problemas, cobranças em duplicidade e deficiência na fiscalização.
Ainda neste contexto, imperioso transcrever lúcido voto proferido pelo Ministro Sepúlveda Pertence, no julgamento da ADI 2.054/DF, in verbis:
“Assim, com a arrecadação descentralizada, surgiram graves problemas no controle da concessão de autorização, para que fossem utilizadas em público, obras musicais, lítero-musicais e de fonogramas, posto que com a pluralidade de associações arrecadadoras, cada uma defendia os interesses de seus associados, dificultando o controle dos valores arrecadados, permitindo que diversos usuários fossem cobrados, duas ou mais vezes, em face de uma única utilização das obras administrativas”.
Neste viés, percebe-se que a descentralização da arrecadação e distribuição dos direitos autorais, além de ferir à Constituição Federal, e à sedimentada jurisprudência pátria, representa um retrocesso que devolverá o Brasil ao “caos” experimentado nos anos 60.
Na mesma esteira, importante destacar que no próprio julgamento do PA 08012.003745/2010-83, o Ministério Público Federal, que, em razão da sua autonomia funcional goza de plena liberdade argumentativa, apresentou parecer asseverando que a aplicabilidade ao Ecad da lógica concorrencial é (I) juridicamente impossível; (II) geraria insegurança jurídica para os autores na fiscalização do cumprimento de todos os requisitos para a utilização da obra e seus respectivos aproveitamentos econômicos, agravando a hipossuficiência; (III) partiria do pressuposto falacioso de que as associações concorrem entre si.
Conforme ora restou elucidado, a recente decisão do Cade viola toda a construção jurídica exarada desde os anos 70, sendo certo, ainda, que em razão de seu conteúdo desfocado da realidade, afronta os princípios basilares da gestão coletiva de direitos autorais, e a própria efetividade da proteção constitucional aos direitos autorais, que de forma competente vem sendo desempenhada pelo Ecad.
Ademais, no mínimo causa espanto ver advogados, que em razão da nobre atividade exercida deveriam preservar o Direito e as Instituições, venham a público incitar o ajuizamento de ações que gozam de tão escasso — quiçá inexiste — fundamento jurídico.
Por fim, insta grifar que a fixação do valor do direito autoral é uma prerrogativa do próprio titular da obra, conforme prevê a própria Constituição Federal. Ninguém mais, além do autor da obra, possui a prerrogativa de fixar o valor do direito autoral. Portanto, causa espanto a afirmação dos autores do comentado artigo, no sentido de que as empresas que pagaram o “sobrepreço” em relação ao que lhes “deveria ser cobrado”, poderão ingressar em juízo para reclamar do Ecad e suas associações tal diferença.
Indaga-se, neste norte: qual é o valor que “deveria ser cobrado”, conforme pretendem os autores do texto, se não aquele fixado pelo próprio autor da obra, através do Ecad? Quem, além do autor, teria a prerrogativa de fixar o preço do direito autoral?
Até que o Brasil sofra uma reforma legislativa ou que o Supremo Tribunal Federal modifique seu entendimento, o valor do Direito Autoral deverá ser fixado, única e exclusivamente, pelo autor da obra, independente de qualquer entendimento proferido pelos demais Poderes do Estado.
Importante ter em mente que, ao contrário do que ocorre com as matérias afetas à Propriedade Industrial, o Direito Autoral e as obras por ela protegidas não podem ser tratadas como mercadorias passíveis de serem barganhadas no “mercado do Direito Autoral”. E, mesmo nesta fantasiosa hipótese, se no “mercado do direito autoral” estivéssemos, não precisaríamos de muitas digressões hermenêuticas para constatar a flagrante hipossuficiência dos autores das obras, em comparação com o segmento econômico que busca sua exploração, bastaria recorrer aos livros de história do Brasil, e retrocedermos aos anos 60.
Por Maurício Brum Esteves
Artigo publicado em Revista Consultor Jurídico, 24 de abril de 2013

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