terça-feira, 17 de maio de 2016

Regulamentação do Marco Civil Exige Medidas de Compliance nas Empresas

No último dia 11 de maio de 2016, foi publicado no Diário Oficial da União o Decreto nº 8.771, de maio de 2016, que regulamenta o Marco Civil da Internet. A lei, sancionada em abril de 2014, estabelece princípios, garantias, direitos e deveres para o uso da Internet no Brasil, abordando temas como liberdade de expressão na rede, responsabilidade de provedores (de conexão e de aplicações de Internet) e neutralidade.

Efetivamente, a grande maioria das disposições do Marco Civil já tinha aplicação imediata, independentemente de qualquer regulamentação. Assim, centenas de processos judiciais foram propostos desde 2014, com base na lei, visando a obrigar provedores a indicarem os autores de fraudes ocorridas na Internet, ou mesmo para que promovessem a exclusão de conteúdos potencialmente ilícitos ou ofensivos. Apesar de ter contribuído para sobrecarregar ainda mais o judiciário, essa sistemática em geral tem funcionado a contento, mediante o célere cumprimento dos requerimentos baseados no Marco Civil, até mesmo para evitar a aplicação das multas diárias usualmente fixadas em Juízo nesses casos.

Porém, alguns artigos dependiam de posterior regulamentação ou suscitavam dúvidas, fazendo com que muitas empresas adiassem os investimentos em compliance até que esses novos parâmetros regulatórios fossem detalhados. Assim, por exemplo, no que se refere à obrigação de guarda de registros de conexão e de acesso a aplicações de Internet (dever este imposto até mesmo para empresas titulares de um mero site no qual seja operada alguma funcionalidade na Internet), não se sabia, ao certo, como os dados deveriam ser guardados, quais os padrões mínimos de segurança da informação ou de controle de acesso que deveriam ser implementados, se os dados precisariam ser apagados após o prazo legal ou se poderiam ser armazenados indefinidamente, etc.

Além disso, no que se refere às penalidades pelo descumprimento dessas obrigações, não se sabia qual seria a autoridade competente para aplicá-las. Também, restava para a regulamentação abordar as exceções à regra da neutralidade da Internet, ou seja a obrigação de tratar de forma isonômica quaisquer pacotes de dados, sem privilegiar uma ou outra aplicação.

O Decreto nº 8.771, ao longo de quatro enxutos capítulos e vinte e dois artigos, detalhou especialmente a discriminação de pacotes de dados na Internet e de degradação de tráfego, os procedimentos para guarda e proteção de dados, as medidas de transparência na requisição de dados e os parâmetros para fiscalização e apuração de infrações.
Agora, com o ambiente regulatório devidamente estabelecido, resta às empresas implementarem as respectivas medidas de compliance, atendendo aos novos parâmetros fiscalizatórios para agentes da Administração Pública e para o Judiciário. Abaixo, destacamos alguns dos principais pontos da Regulamentação do Marco Civil e as iniciativas necessárias para a devida adequação e a prevenção de multas ou ordens de suspensão/interrupção de serviços.



ABRANGÊNCIA DO MARCO CIVIL

Logo em seus primeiros artigos, o Decreto expõe a quem ele se dirige: responsáveis pela transmissão, pela comutação ou pelo roteamento e aos provedores de conexão e de aplicações de internet. Não foram englobados os “serviços de telecomunicações” que não se destinam ao provimento de conexão à internet, bem como os “serviços especializados” – que não configurem substituto à internet e sejam destinados a grupos específicos de usuários com controle estrito de admissão.

Justamente neste ponto, a regulamentação traz insegurança ao afirmar não ser aplicável a “serviços especializados”, ainda que utilizem protocolos TCP/IP ou equivalentes, “desde que não se confundam, em termos de funcionalidade, com o caráter público e irrestrito da Internet”. Na prática, o que estaria sendo excluído do âmbito do Marco Civil de acordo com essa exceção? Apenas ferramentas privadas, usualmente utilizadas por empresas para fins administrativos, mediante senha? Ou seria possível entender que também configurariam “serviços especializados”, excluídos do Marco Civil, até mesmo recursos como o Skype? Uma interpretação ampla dessa exceção, certamente impediria a utilização do Marco Civil para a apuração fraudes ou atos ilícitos em canais bastante populares, o que nos causa preocupação.


NEUTRALIDADE

As exceções à neutralidade trazidas no Decreto autorizam a priorização de serviços de emergência e em caso de risco de desastre (naturalmente compreensível), mas também para o atendimento a “requisitos técnicos”, evitar o “congestionamento de redes”, ou até mesmo para assegurar sua “estabilidade, segurança, integridade e funcionalidade”. É bem verdade que o texto anteriormente submetido a consulta pública trazia hipóteses ainda mais amplas e genéricas, porém é justificada a preocupação no sentido de que essas exceções possam permitir demasiada discriminação de pacotes de dados, atenuando a eficácia da tão festejada neutralidade.

De qualquer modo, o Decreto exige a adoção de “medidas de transparência” para explicitar ao usuário os motivos do gerenciamento que importe em degradação ou discriminação excepcional do trafego.

De outro lado, o novo art. 9º, do Decreto veda a estratégia do chamado “zero rating”, frequentemente utilizada por provedores de conexão para ofertar acessos gratuitos a determinados aplicativos, em prejuízo de outros. A partir de agora, passa a ser expressamente proibido empreender condutas unilaterais que “priorizem pacotes de dados em razão de arranjos comerciais”.

A medida demanda revisão de modelos comerciais e, a nosso ver, é bem-vinda, eis que o zero-rating configurava vantagem concorrencial artificial, dificultando injustamente a entrada de novos competidores mediante soluções concorrentes, em prejuízo da inovação.


ACESSO DIRETO A DADOS POR AUTORIDADES

Cabia à regulamentação, ainda, detalhar a forma mediante a qual seria permitido o acesso a dados cadastrais dos usuários, sem a necessidade de ordem judicial. Porém, a regulamentação não explicita quais são as autoridades autorizadas ou se o usuário deve ou não ser informado sobre a solicitação dos seus dados.

O tema é extremamente sensível para o resguardo da privacidade dos usuários da Internet, como indica o embate recente, nos Estados Unidos, entre a Apple e o FBI. Na medida em que o Marco Civil autorizou o acesso a dados cadastrais por autoridades administrativas, o ideal seria que a regulamentação detalhasse de forma mais específica essa hipótese excepcional de requisição de dados sem ordem judicial, sem deixar espaço para abusos.


PADRÃO DE GUARDA DE DADOS

Neste ponto, a regulamentação acertou ao exigir que as empresas passem a adotar efetiva política de governança da informação incluindo: controle de acesso aos dados; mecanismos de autenticação; inventário de quem teve acesso aos dados; criptografia e medidas tecnológicas para assegurar a integridade dos dados; e separação de bancos de dados comerciais. Essas exigências valem tanto para provedores de conexão, quanto para empresas que possuem uma mera aplicação de Internet, ou seja, um site com funcionalidades. O detalhamento dos procedimentos e padrões técnicos exigidos foi delegado ao Comitê Gestor da Internet (CGI).

Ainda, o Decreto estabelece o princípio da não-retenção de dados, incluindo-se os obrigatórios registros de conexão e de acesso a aplicações, mas, também, dados cadastrais, dados sensíveis e comunicações privadas. Conforme consta de forma expressa no seu artigo 13, “os provedores de conexão e aplicações devem reter a menor quantidade possível de dados pessoais, comunicações privadas e registros de conexão e acesso a aplicações”. Mais: foi esclarecido que, tão logo atingido o prazo legal de guarda ou a finalidade para os quais foram coletados, deverão os mesmos ser imediatamente excluídos, em nome do princípio da não retenção. Porém, se de um lado foi privilegiada a privacidade dos usuários, de outro essa opção legislativa demandará ação rápida por parte das vítimas de fraudes ou crimes digitais.

Além de sanar a controvérsia sobre “o que” e “até quando” deve ser objeto de guarda pelos provedores, o Decreto esmiúça, inclusive, que dados guardados deverão ser mantidos em formato interoperável e estruturado. Essa determinação é relevante, pois muitas vezes as informações trazidas por provedores em processos judiciais não atendem à clareza necessária para a apuração de responsabilidades.

Por fim, a opção não detalhar os requisitos específicos de segurança no armazenamento de dados, remetendo-se a matéria a normativas do CGI, é salutar, eis que permite atualização mais ágil de parâmetros que estão em constante evolução.


FISCALIZAÇÃO

A regulamentação do Marco Civil atribuiu a fiscalização do seu cumprimento a três diferentes autoridades: a SNC (Secretaria Nacional do Consumidor), para a fiscalização e apuração de infrações nos termos do Código de Defesa do Consumidor; o SBDC (Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência), para a apuração de infrações à ordem econômica; e a Anatel (Agência Nacional de Telecomunicações), para a fiscalização e apuração de infrações referentes à proteção de registros de conexão.

Em que pese seja louvável essa divisão especializada de responsabilidades, não ficou claro o suficiente se a competência da SNC se refere apenas a situações de consumo (como seria natural), o que, se for o caso, deixaria um vácuo quanto à autoridade competente para fiscalizar a guarda de dados de usuários em outras circunstâncias, em que um consumidor – destinatário final de bens ou serviços – não se faça presente. Essa é a hipótese, por exemplo, de aplicações de Internet utilizadas por empresas para a execução das suas atividades.


PENALIDADES: TEMA AINDA INDEFINIDO


Em que pese a competência pela fiscalização esteja relativamente equacionada, um preocupante ponto cego do Decreto é a ausência de detalhamento acerca da forma de aplicação das penalidades previstas no Marco Civil. Não foram esclarecidos os critérios para quantificação da multa pecuniária, por exemplo, que pode chegar a 10% do faturamento bruto do grupo econômico no ano imediatamente anterior. Da mesma forma, o Decreto não informa em que hipóteses se aplicariam as demais penalidades, que, em tese, poderiam incluir ordem de suspensão do serviço ilícito. Lacunas legislativas implicam em incertezas, insegurança jurídica e no risco da adoção de critérios desproporcionais em diferentes decisões judiciais, como se viu na recente ordem de bloqueio do Whats’App.

Rodrigo Azevedo / Maurício Brum Esteves
* Texto originalmente publicado no site propriedade.digital, reeditado em coautoria para fins de atualização ao novo regulamento.
 

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